Sonia Mota*
No calendário protestante, o dia 31 de outubro é
uma data importante, pois é a data em que se comemora o dia da Reforma. Todo
protestante com um mínimo de conhecimento de história da Igreja citará de cor
reformadores como Martinho Lutero, João Calvino, João Knox, Ulrico Zwínglio,
Filipe Melanchton e outros. Mas nesta lista está faltando uma parte importante
desta história. Onde estão as mulheres que atuaram pela Reforma da Igreja,
defendendo, entre outros, a ordenação de mulheres? Que foi feito da memória
delas e do trabalho que realizaram? Sabemos que ambos, homens e mulheres,
tiveram papel relevante no movimento da Reforma. Mas lamentavelmente as mulheres
são geralmente esquecidas. No que segue, queremos dar visibilidade à
importância da atuação de algumas destas mulheres, que inclusive tiveram que se
defender dos próprios reformadores homens.
As reformadoras
Catarina von Bora (1499-1550), na
Alemanha, talvez seja a mulher mais lembrada da Reforma, sendo hoje reconhecida
por ter extrapolado o papel de "esposa de Lutero". Além de excelente
administradora dos bens familiares e da casa, conhecia os segredos da medicina
caseira, utilizando seus conhecimentos para curar muitas pessoas. Além disto,
havia sido monja e, mesmo antes de casar com Lutero, já conhecia o pensamento
do reformador através dos seus escritos. Era uma mulher culta, que sabia ler e
escrever. Com seus conhecimentos e por participar dos debates que aconteciam em
sua casa, Catarina pôde opinar sobre assuntos referentes à Reforma. Em uma das
cartas, Lutero informa a ela sobre o Colóquio de Marburg, que tivera com outros
reformadores sobre a Santa Ceia, destacando-se dentre eles Zwínglio. Além do
mais, foi ela quem incentivou Lutero a responder a Erasmo, quando este escreveu
De Libero Arbitrio, ao que Lutero respondeu com o escrito De Servo Arbitrio
(5).
Catarina Schutz Zell (1497-1562), de Estrasburgo, era uma mulher culta, leitora de Lutero; casou-se com um sacerdote que sofreu a excomunhão. Para defender o esposo, escreveu ao bispo cartas de protesto em defesa do casamento clerical:
Você me lembra que o apóstolo Paulo disse
que as mulheres estejam caladas na Igreja. Eu desejo lembrar-lhe as palavras do
mesmo apóstolo de que em Cristo não há mais macho nem fêmea, e a profecia de
Joel: "Derramarei do meu espírito sobre toda a carne e seus filhos e suas
filhas profetizarão". Não pretendo ser João Batista repreendendo os
fariseus. Não alego ser Natan censurando Davi. Só aspiro ser a besta de Balaão
castigando o seu senhor (7).
Recebia em casa muitos líderes da Reforma,
entre eles Calvino. Além de acolher em casa pessoas perseguidas por causa da
Reforma., Catarina Zell também escrevia muito, e em suas cartas incentivava as
mulheres dos fugitivos a permanecerem firmes na fé. Estes escritos foram
publicados como tratado de consolação. Escreveu também comentários sobre os
Salmos 51 e 130, sobre a oração dominical e o Credo. Prestou serviços de
acolhida a flagelados, exercendo o ministério da visitação. Intercedeu por
melhorias hospitalares. Pregou diversas vezes, inclusive na morte do esposo.
Claudine Levet (1532...?) atuou em
Genebra. As atividades desta mulher foram relatadas nas atas de Antoine
Fromment, pastor protestante da época. Quando se achava em um ajuntamento em
que não havia ministros, os presentes pediam-lhe para explicar a Escritura,
porque não podiam encontrar pessoa mais bem dotada com a graça do Senhor.
Deixando para trás todas as suas pompas aplicou suas posses no socorro aos
pobres, principalmente aos da família da fé, e os que haviam sido expulsos por
causa da verdade, recebendo-os em sua casa (8).
Através das informações registradas por
Fromment, é possível concluir que Claudine Levet pregava publicamente em
Genebra, antes mesmo da chegada de Calvino.
Marie Dentière (9) também atuou em
Genebra, não só pregando como publicando livros. Entre estes estão A Guerra e o
Livramento da Cidade de Genebra (1536), sobre a Reforma genebrina entre 1504 a
1536, Defesa das Mulheres e Uma Carta Muito Útil (1539), duas cartas escritas
para a rainha Marguerite de Navarra. Dentière conclui a carta Defesa das
Mulheres fazendo um apelo à rainha para que interceda junto ao irmão, o rei da
França, fazendo com que se elimine a divisão entre homens e mulheres, pois
estas também receberam revelações que não podem ficar escondidas.
Embora não seja permitido a nós (mulheres)
pregar em assembléias públicas e nas Igrejas, não obstante não nos é proibido
escrever e admoestar uma a outra com todo o amor. Não somente para vós,
senhora, desejei escrever esta carta, mas também comunicar coragem a outras
mulheres mantidas em cativeiro, a fim de que todas elas não temam ser exiladas
do seu país, parentes e amigos, como eu mesma, por causa da Palavra de Deus.
Para que elas possam, de agora em diante, não ser atormentadas e afligidas em
si mesmas, mas antes, rejubiladas, consoladas e estimuladas a seguir a verdade,
que é o evangelho do Senhor Jesus Cristo. Até agora, este evangelho tem estado
escondido, de sorte que ninguém ousa dizer uma palavra a respeito dele, e
apareceu que as mulheres não deviam ler e entender nada dos escritos sagrados.
É esta a causa principal, minha senhora, que me compeliu a escrever a V.
Excia., esperando em Deus que no futuro as mulheres não serão tão desprezadas
como no passado... em todo o mundo (10).
O estilo literário de Dentière mostra que
ela escreve como mulher para mulheres, utilizando mesmo o recurso inclusivo,
não omitindo nos seus escritos as figuras femininas da Bíblia, alertando para o
fato de que não foram as mulheres que traíram Jesus ou foram falsas profetisas.
Quando analisa o encontro de Jesus com a mulher samaritana, destaca esta mulher
como uma das maiores entre os pregadores. E quanto à ordem de Jesus para as mulheres
que testemunharam sua ressurreição, ela conclui:
Se Deus deu então a graça a algumas boas
mulheres, revelando-lhes, pelas Santas Escrituras, algo santo e bom, não
ousariam elas escrever, falar e declará-lo uma à outra? Ah! seria uma audácia
pretender impedi-las de fazê-lo. Quanto a nós, seria muita tolice esconder o
talento que Deus nos deu (11).
Uma calvinista inglesa, Rachel Specht,
usou, em 1621, a parábola dos talentos para defender o direito das mulheres.
Ela argumentava que as mulheres receberam corpo, alma e espírito de Deus. A
alma, segundo ela, era o lugar onde habita a mente, a vontade e o poder. Para
que Deus daria todos estes talentos a elas se não para serem usados? Não
usá-los seria uma irresponsabilidade. As mulheres precisavam assumir o
compromisso com o Evangelho, ou teriam que responder diante do Senhor pelo mau
uso dos seus talentos. Rachel escrevia em forma de poesia e usava o próprio
nome, em uma época em que as mulheres faziam uso de pseudônimos masculinos para
permanecer no anonimato. As suas anotações eram abonadas por passagens
bíblicas, o que revela seu conhecimento e capacidade de argumentação teológica
(12).
As denominações oriundas da Reforma levaram
algum tempo para permitir a ordenação de mulheres. Ainda hoje, em alguns lugares
e em determinadas denominações, lamentavelmente ela não é permitida.
Resgatar esta história é fazer justiça a
estas mulheres que tiveram a coragem de fazer diferente, abrindo caminhos para
que tantas outras pudessem assumir o púlpito e ser ordenadas ao ministério. Que
o dia 31 de outubro seja também um espaço de comemorar todas estas reformadoras
e de continuar lutando pelo nosso direito de exercer "o sacerdócio
universal de todos os e todas as crentes".
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Referências bibliográficas:
(5) Heloísa Gralow DALFERTH, Katharina von Bora,
em especial p. 86.
(6) Alexander Duncan REILY, Ministérios
Femininos em Perspectiva Histórica, p. 136-137.
(7) R. BAINTON, Women of
the Reformation in Germany and Italy, p. 55, apud: J. D. DOUGLAS, op. cit.
p. 101.
(8) Anthoine FROMMENT, Les
Actes et gestes merveilleux de la cité de Genève, apud: J. D. DOUGLAS, op.
cit., p. 110.
(9) J. D. DOUGLAS, op.
cit., p. 111-114.
(10) Apud J. D. DOUGLAS,
op. cit., p. 112-113.
(11) Apud J. D. DOUGLAS,
op. cit., p. 113.
(12) W. DEIFELT, op. cit.,
p. 365-366.
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Ecumenismo
- CEBI
- 27.10.11
*Sonia Motta é pastora da IPU e
colaboradora no CEBI. É organizadora do livro Juventude Superando a Violência
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